No exercício da nossa atividade no
magistério, ao criar a disciplina eletiva Evolução
dos Transportes, na Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia, tínhamos
a proposta de oferecer a estudantes das mais diversas áreas profissionais um
retrato geográfico dos meios e vias, inclusive da operação, integração e
evolução dos transportes, dando a cada aluno uma visão e uma técnica de
inserção de suas futuras necessidades em um contexto harmônico com os modos e
sistemas disponíveis, atuando com a devida competência no planejamento, no
projeto, na construção e na operação de tais estruturas, satisfazendo aquelas
necessidades. Assim, por exemplo, ao estudante da área da saúde, dávamos
subsídios para solicitar e fiscalizar profissionalmente os serviços e
instalações de transporte, necessários ao atendimento dos pacientes nos mais
diversos casos. Com esse escopo, era necessário sondar e consultar o interesse
de cada aluno em turmas sempre heterogêneas, chegando à conclusão que estamos
desperdiçando um potencial econômico e talvez as melhores áreas em qualidade de
vida para os habitantes de uma região, por não termos transporte adequado e
dimensionado para atender cada necessidade e eliminar eventual ociosidade.
Enfatizando essa postura em uma das turmas, registramos
que a travessia da Baía de Todos os Santos já teria sido no passado, em torno
dos anos 50, relativamente melhor servida do que então, nos anos 70. Houve
época em que centenas de saveiros faziam o transporte diário de mercadorias das
ilhas dessa baía e do vale do rio Paraguaçu para os então existentes Mercado
Modelo e Feira de Água de Meninos, ambos incendiados, em Salvador; assim como
pequenos navios serviam habitantes do Recôncavo – regularmente de Cachoeira,
Santo Amaro e Itaparica – que se deslocavam diariamente em ida e volta. Com a
criação do Centro Industrial de Aratu e a construção da central de alimentos da
Ceasa naquela área, transferiu-se dos saveiros para os caminhões o transporte
de mercadorias de subsistência, com danos permanentes até hoje, praticamente
acabando-se com o transporte marítimo de cargas, enquanto os navios da
Companhia de Navegação Baiana davam lugar aos ônibus intermunicipais em direção
à Estação Rodoviária que foi construída na área do Mercado das Sete Portas e
depois passou para a atual, em frente ao Shopping Iguatemi. Tirava-se o
transporte hidroviário do mapa, para criar um mercado que beneficiava a
indústria automobilística. Essa deformação da política de transportes não só
continuou como se amplia até hoje, podendo-se afirmar que é uma das maiores
causas dos nossos problemas econômicos crônicos.
Assim, interesses políticos acoplados à
total desinformação e a nenhum planejamento resultaram na falência da Baía de
Todos os Santos, como fornecedora de alimentos e demais utilidades, levando
milhares de pessoas à miséria e tirando o transporte marítimo – que
praticamente desapareceu – do quadro econômico regional, mantendo-se apenas a
travessia das lanchas de passageiros entre Salvador e Mar Grande, até que outra
decisão política implantou o sistema ferry-boat,
para atender prioritariamente o tráfego rodoviário do Sul da Bahia, pela
BR-101. Tudo feito na base da canetada e de projetos contratados após estudos
meramente justificadores das decisões políticas, como se faz agora para
construir uma ponte entre Salvador e Itaparica.
Não é proposta deste artigo, que se estende
como palestra para dentro da IV Semana da Baía de Todos os Santos, contudo,
penetrar nos meandros dessas ocorrências já esquecidas e aqui referidas de modo
apenas introdutório para justificar a necessária e gritante urgência de se
implantar um estado de consciência na população baiana, isto é, nos habitantes
dos municípios do Recôncavo da Baía de Todos os Santos, sob a pena de se jogar
fora um dos maiores patrimônios do nosso planeta. Enquanto o Dubai mostra
orgulhosamente uma geografia inteiramente construída artificialmente dentro
d’água pelo homem, fazendo disso uma atração turística de faturamento
internacional milionário, nós, baianos, ociosamente, deixamos desaparecer,
paulatinamente, sob nossas vistas, um tesouro geográfico natural, que poderia
ser explorado também internacionalmente, atraindo as maiores fortunas do mundo
para investir em turismo e lazer náutico, com infraestrutura sem igual no
planeta, enriquecendo a população de todo esse entorno da nossa BTS, ainda hoje
quase virgem, privilegiando o transporte marítimo, como ocorre em todo o mundo
civilizado.
Também na Escola Politécnica, tentamos montar
o que chamamos então de Escritório de Investigação e Memória dos Transportes na
Baía de Todos os Santos, mas mesmo sendo chefe do Departamento de Transportes,
não conseguimos sequer despertar o interesse dos nossos pares para tal, em face
às dificuldades burocráticas. Neste momento, tragando valiosos subsídios da
Geologia, temos uma visão muito clara da realidade da nossa BTS, mas não só
dela. Sabemos que sua Geografia é fruto dos fenômenos geológicos que ocorreram durante
a formação da costa brasileira nesta posição, colocando no meio de um mapa de
invejável linearidade litorânea, um trecho demasiadamente recortado, tanto
quanto o é uma fatia de queijo mordida na borda por uma dentadura
irregular. Já temos dito e escrito que
nossos historiadores falharam grosseiramente ao não se interessarem pela volta
do Gaspar de Lemos a Portugal, logo após o Descobrimento do Brasil, obrigatoriamente
bordejando nossa costa desde Porto Seguro e passando com o imediato registro de
suas latitudes, pelas baías de Camamu, de Cairu e de Todos os Santos – nomes
esses que só seriam dados posteriormente. Agora, somos levados a lamentar o
descaso também grosseiro de nossos geógrafos, que ainda não perceberam termos
um golfo formado por essas três baías entrelaçadas e que não deve ter outro
nome, que não o de Golfo da Bahia.
Vê-se na sequência dos mapas apresentados,
que temos algumas realidades a serem examinadas à luz da Geologia, que nos
permite fazer Geografia e à luz da Geografia, que nos permite situar a
História. Ao dividir o Brasil em Capitanias Hereditárias, os portugueses
determinaram o limite Sul da Capitania da Bahia de Todos os Santos exatamente
na foz do atual rio Una, então chamado Tinharé, pelos índios do lugar, o que
lhe daria uma barra extensa em mar aberto ligando a Ponta do Curral, na praia
de Guaibim, à Ponta de Santo Antônio, em Salvador. Se ficarmos com essa barra,
assim aberta, teremos que falar em golfo e não em baía. Golfo de Todos os
Santos, mantendo o momento de sua descoberta pela expedição de Gonçalo Coelho,
em 1º de novembro de 1501. Para manter a designação de Baía de Todos os Santos,
já tradicional, somos forçados a considerar uma “barra falsa”, mais fechada, da
Ponta de Santo Antônio para um lugar qualquer na ilha de Itaparica ou o lugar
mais próximo fora da ilha: a Ponta do Garcez. Diríamos, portanto, estar a Baía
de Todos os Santos assim delimitada, dentro do Golfo de Todos os Santos e mais
claro nos parece existir o Golfo da Bahia, desde a Ponta de Santo Antônio, em
Salvador, até a Ponta do Mutá, na península de Camamu.
Mais do que um artigo e uma palestra, vemos,
no entanto, a necessidade de um congresso de geografia para a discussão dessa
proposta, devendo ela – caso aceita – ser aprovada e lavrada para buscar
indicação nos mapas do Brasil e do mundo. Poder-se-á dizer que o nome é
impróprio porque podemos ter a baía de um golfo, mas não um golfo da baía. Sabemos,
contudo, que, Bahia com “h” é o Estado da Bahia, em cujo litoral já temos a
Baía de Todos os Santos e viríamos a ter o Golfo de Todos os Santos – variando
apenas a barra – tudo isso dentro do Golfo da Bahia, juntando-se àquela, as
baías de Camamu e Cairu. Publicado este pequeno artigo, divulgando-o em
palestra dentro da IV Semana da Baía de Todos os Santos, no Gabinete Português
de Leitura de Salvador, parece-nos necessário levar o tema para um congresso
brasileiro de Geografia em busca da inclusão desse nome nos mapas do Brasil e para
que tudo esteja nos seus conformes.
Adinoel Motta Maia [1]
[1]
Adinoel Motta Maia é engenheiro civil, professor aposentado da Universidade
Federal da Bahia, onde criou as disciplinas “Aeroportos”, “Evolução dos
Transportes” e “Fundamentos de Astronomia e Astronáutica”. Entre outros livros,
é autor do romance “A Cruz dos Mares do Mundo”, cujo cenário é centrado na Baía
de Todos os Santos em 1501 e em 1997.
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